O dia da criança já lá vai, mais um na rotina dos anos em
que multiplicam votos e desejos, se apregoam iniciativas, se prometem mudanças
de que nada sobra cumpridas as 24 horas regimentais. O dia depois é pelo menos
igual ao dia antes, provavelmente pior tendo em consideração as cavalgadas das
guerras, as procissões trágicas de refugiados, as angústias crescentes da fome,
a multiplicação dos bombardeamentos cegos, com ou sem pilotos ou artilheiros.
Este ano houve pelo menos uma novidade, no mínimo abusiva e
temperada com veneno de propaganda que foi a colagem do dia do leite ao dia da
criança, autorizada por quem de direito onde o direito também é bastas vezes
uma questão de propaganda. “Dia da criança é também o dia do leite”, mas do
leite de uma determinada marca que assim se enfunou com penas de pavão
beneficiando da benevolência cúmplice perante os atentados quotidianos aos dias
da decência, que deviam ser todos os dias.
E por falar em marcas, tropecei por acaso num espaço
dedicado pela estação do retirante de Bilderberg ao dia da criança, não podia
deixar de ser, fica sempre bem. E também ao dia da criança e das marcas, fica
melhor ainda.
Um alegre espaço inspirado talvez no velho rifão “de
pequenino se torce o pepino” transposto para a era do marketing, das marcas, do
mercado, agora sim, estamos no que mais interessa, os pequenos seres
transformados em fontes de grandes lucros.
Um mercado de 700 milhões de crianças, ouvia-se em voz off,
“os pequenos consumidores” de hoje, os grandes consumidores de amanhã, daí que
as marcas pretendam desde já criar com eles “uma relação duradoura” que os
acompanhará por certo através da vida, podendo até garantir-lhes a escolha do
caixão quando chegar a hora, porque marca que é marca e que se preza trata dos
dias de hoje com os olhos sempre postos no amanhã, mesmo no mais distante.
Setecentos milhões de pequenos consumidores é obra. Com toda
a franqueza não consegui perceber se a cifra engloba os que fogem das guerras
afogando-se no Mediterrâneo, os que nascem com fome e irão morrer com fome, os
que estão vocacionados a não ir além das primeiras lições, soterrados nos
escombros de uma escola bombardeada, os que são fuzilados sumariamente, com o
resto da família, por um drone enviado por sua excelência o presidente Obama,
na verdade um patriarca de todas as marcas. Ou se essa cifra mágica e
prometedora dos 700 milhões de pequenos consumidores já integra os descontos
óbvios e elimina das estatísticas aqueles que nascem condenados a não consumir
coisa nenhuma, nem o leite ao menos no dia do leite e da criança, nem a chucha
aerodinâmica de última geração.
É verdade, as marcas preocupam-se com as crianças, pensam
até muito nelas, nas maneiras de as ajudar, de as educar, assim se ouvia no
programa. Deseja-se, por isso, que esses recém-nascidos membros da planetária
família do mercado ganhem muito cedo os hábitos de consumo para que estes
fiquem enraizados de maneira duradoura, porque criança que se preze deve saber decidir
desde o berço, de preferência muito antes de conseguir articular palavras,
desde que escolha produtos de marca, quanto mais recomendada melhor - e nisso
não haverá aliado mais saudável dos pais e dos próprios que a honestíssima
publicidade.
Pequenos consumidores activos, mercado satisfeito. Uma
aliança para a vida porque, como se percebe pela sociedade em que vivemos, nada
há que o mercado mais aprecie que as crianças como prometedoras, prolongadas e inesgotáveis
fontes de lucro. As que, por razões colaterais, não atingirem esse estádio de
contribuintes líquidas do mercado desde as mais tenras idades podem então servir
de carne para canhão, com isso se aliviando o planeta de uma ganga indesejável,
imprestável para o consumo. O mercado trata disso.
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