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sábado, 6 de junho de 2015

O DIA DOS PEQUENOS CONSUMIDORES


O dia da criança já lá vai, mais um na rotina dos anos em que multiplicam votos e desejos, se apregoam iniciativas, se prometem mudanças de que nada sobra cumpridas as 24 horas regimentais. O dia depois é pelo menos igual ao dia antes, provavelmente pior tendo em consideração as cavalgadas das guerras, as procissões trágicas de refugiados, as angústias crescentes da fome, a multiplicação dos bombardeamentos cegos, com ou sem pilotos ou artilheiros.
Este ano houve pelo menos uma novidade, no mínimo abusiva e temperada com veneno de propaganda que foi a colagem do dia do leite ao dia da criança, autorizada por quem de direito onde o direito também é bastas vezes uma questão de propaganda. “Dia da criança é também o dia do leite”, mas do leite de uma determinada marca que assim se enfunou com penas de pavão beneficiando da benevolência cúmplice perante os atentados quotidianos aos dias da decência, que deviam ser todos os dias.
E por falar em marcas, tropecei por acaso num espaço dedicado pela estação do retirante de Bilderberg ao dia da criança, não podia deixar de ser, fica sempre bem. E também ao dia da criança e das marcas, fica melhor ainda.
Um alegre espaço inspirado talvez no velho rifão “de pequenino se torce o pepino” transposto para a era do marketing, das marcas, do mercado, agora sim, estamos no que mais interessa, os pequenos seres transformados em fontes de grandes lucros.
Um mercado de 700 milhões de crianças, ouvia-se em voz off, “os pequenos consumidores” de hoje, os grandes consumidores de amanhã, daí que as marcas pretendam desde já criar com eles “uma relação duradoura” que os acompanhará por certo através da vida, podendo até garantir-lhes a escolha do caixão quando chegar a hora, porque marca que é marca e que se preza trata dos dias de hoje com os olhos sempre postos no amanhã, mesmo no mais distante.
Setecentos milhões de pequenos consumidores é obra. Com toda a franqueza não consegui perceber se a cifra engloba os que fogem das guerras afogando-se no Mediterrâneo, os que nascem com fome e irão morrer com fome, os que estão vocacionados a não ir além das primeiras lições, soterrados nos escombros de uma escola bombardeada, os que são fuzilados sumariamente, com o resto da família, por um drone enviado por sua excelência o presidente Obama, na verdade um patriarca de todas as marcas. Ou se essa cifra mágica e prometedora dos 700 milhões de pequenos consumidores já integra os descontos óbvios e elimina das estatísticas aqueles que nascem condenados a não consumir coisa nenhuma, nem o leite ao menos no dia do leite e da criança, nem a chucha aerodinâmica de última geração.
É verdade, as marcas preocupam-se com as crianças, pensam até muito nelas, nas maneiras de as ajudar, de as educar, assim se ouvia no programa. Deseja-se, por isso, que esses recém-nascidos membros da planetária família do mercado ganhem muito cedo os hábitos de consumo para que estes fiquem enraizados de maneira duradoura, porque criança que se preze deve saber decidir desde o berço, de preferência muito antes de conseguir articular palavras, desde que escolha produtos de marca, quanto mais recomendada melhor - e nisso não haverá aliado mais saudável dos pais e dos próprios que a honestíssima publicidade.
Pequenos consumidores activos, mercado satisfeito. Uma aliança para a vida porque, como se percebe pela sociedade em que vivemos, nada há que o mercado mais aprecie que as crianças como prometedoras, prolongadas e inesgotáveis fontes de lucro. As que, por razões colaterais, não atingirem esse estádio de contribuintes líquidas do mercado desde as mais tenras idades podem então servir de carne para canhão, com isso se aliviando o planeta de uma ganga indesejável, imprestável para o consumo. O mercado trata disso. 


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