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sábado, 1 de agosto de 2015

BANDO DE MALFEITORES


Poderia ter acontecido em Portugal, na Estónia, em Itália, em qualquer outra nação da tão democrática e incorruptível União Europeia, mas desta vez foi em França. Poderia ter sido obra de uma gestão da direita, de uma administração socialista, mas desta feita o desprezo por bens públicos e a reverência ante os mais poderosos do dinheiro é obra conjugada das duas ideologias fundidas na ideologia do lucro, interpretada por verdadeiros bandos de malfeitores.
O caso desenvolve-se à volta da frequência audiovisual analógica terrestre no canal 23, entregue gratuitamente pelo Estado francês para criação da TVous Diversité, que logo mudou de nome para Numero 23 e vai cair agora nas mãos do terceiro homem mais rico de França, um dos donos de L’Express, Libération e respectiva irmandade sob o nome de Next RadioTV (por enquanto). Pela história passam nomes ligados às administrações Sarkozy e Hollande, ex-ministros e ex-conselheiros presidenciais, um oligarca russo cujo dinheiro chegou a Paris via Chipre, dirigentes e funcionários dos partidos do chamado “arco da governação”.
As frequências audiovisuais são bens raros e públicos, que deveriam ser geridos pelos Estados – como representantes dos cidadãos – ao serviço da informação, cultura e diversão destes. Sabemos que entre a teoria e a prática vai uma longa distância nas sociedades que se dizem modernas; ainda assim, a situação é tão escandalosa que não merece ir para a conta das indiferenciadas.
Em Julho de 2012, o Conselho Superior do Audiovisual de França, organismo estatal que gere as frequências de rádio e televisão, entregou o canal 23 a uma candidatura encabeçada por um lobista da fina flor do capital parisiense, Pascal Houzelot, que surgiu em cena acompanhado por Valérie Bernis, ex-colaboradora do ex-primeiro ministro Balladour e ocupando uma posição de topo na administração do império GDF Suez; e David Kessler, um gestor de vários e conhecidos meios de comunicação trabalhando então na campanha eleitoral de Hollande, de onde transitou para conselheiro de comunicação social do novo presidente. O projecto por eles apresentado, a TVous Diversité, uma televisão “aberta ao mundo e às outras culturas”, segundo as palavras de Kessler, mereceu desde logo os maiores encómios da comunicação agindo como propaganda bem-falante.
A frequência foi entregue gratuitamente à candidatura encabeçada por Houzelot, a qual, quase sem se dar por isso, passou a chamar-se Numero 23, deixando de lado não apenas a designação TVous Diversité como a própria multiculturalidade. Além de congregar parte da casta financeira parisiente em torno do seu projecto, Pascal Houzelot – que sempre navegou bem tanto em gestões socialistas como de direita – contou ainda com o apoio financeiro do oligarca russo Alicher Uzmanov, a 71ª fortuna mundial pelas contas da revista Forbes. Para que os trâmites decorressem de acordo com as normas europeias, o dinheiro russo foi previamente lavado em Chipre.
Exactamente dois anos e meio depois, o período estabelecido por lei para que seja possível a transferência de mãos de uma frequência audiovisual, a Numero 23 foi vendida ao grupo Next RadioTV de Alain Weill (Radio Monte Carlo Info, por exemplo) por 88,5 milhões de euros, 48,5 milhões dos quais em dinheiro vivo, nos termos de um negócio acordado muito tempo antes e que apenas esperou pelo período de nojo imposto por lei para ser anunciado. Isto é, o projecto TVous Diversité, recebido gratuitamente das mãos do Estado francês, rendeu 88,5 milhões limpos aos seus financiadores, sendo que Pascal Houzelot transitou directamente para a administração da Next RadioTV.
Ao revelar a venda, Houzelot argumentou que optou pelo negócio com Alain Weill por ser um “grupo independente” entre os tubarões da comunicação social. Porém, ainda as assinaturas do contrato estavam frescas e já a Next RadioTV passava para as mãos de um desses tubarões, Patrick Drahi, a terceira fortuna de França, que a engolirá gradualmente até 2019. Drahi representa um conglomerado onde avultam nomes como a Societé Française de Radiofusion (SFR), L´Express, Libération, Strategies e mais uma dúzia de revistas, os serviços por cabo Numericable, vários meios de comunicação e uma empresa de telefones móveis israelitas.

Assim se vão partilhando os lucros obtidos através de um bem público que o Estado francês, supostamente em nome dos cidadãos, alienou sem nada obter em troca a não ser – na verdade está aqui o grande segredo da teia de perversidades – a garantia de poder contar com um aparelho de propaganda ao serviço de um falso pluralismo transformado em ideologia única e absoluta.

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