Desde que se tornou pasto da tenebrosa máquina de
manipulação em que se transformou a comunicação social dominante, a chamada “crise
dos refugiados” está a ser deliberadamente desfocada do seu centro nevrálgico,
a questão humanitária, mediante o recurso aos artifícios habituais onde se
movem os pescadores de águas turvas, os oportunistas de grosso calibre e,
sobretudo, os barões político-militares para quem o mundo é um vasto tabuleiro
de guerras e rentáveis oportunidades.
Nas últimas horas, aviões de guerra franceses e britânicos,
os mesmos ou gémeos dos que há três anos deixaram a Líbia no caos, começaram a
sobrevoar a Síria com o objectivo proclamado de combater simultaneamente o
regime de Bachar Assad e o Estado Islâmico, coisa em que ninguém acredita, nem os
próprios. A prová-lo está o caricato anúncio de um exercício de tiro britânico
já realizado em território sírio para liquidar terroristas que, imagine-se,
projectavam abater essa nobre dama que é a rainha de Inglaterra. Em suma, à
boleia da “crise dos refugiados”, a NATO entrou directamente na guerra contra a
Síria, como os mais falcões dos atlantistas há tanto desejavam.
Descodifiquemos os factos. Depois de o presidente francês
Hollande ter declarado que acolher todos os refugiados seria “fazer a vontade
ao Estado Islâmico”, aviões franceses e ingleses, logo da NATO (por inerência)
entraram em acção num país soberano, sem mandato da ONU nem autorização do
governo legítimo, para intimidarem não apenas esse governo como (alegadamente)
um grupo que o combate, neste caso o Estado Islâmico, protegido e criado por
países aliados de França e do Reino Unido como são Israel e os Estados Unidos
da América. Continuando a descodificação, lembro que esse mesmo Estado Islâmico
não é mais do que uma consequência directa do desmantelamento do Iraque, da
Líbia e da guerra civil síria. Prosseguindo ainda a descodificação, recordo que
países como o Qatar e a Arábia Saudita, tão aliados de França, do Reino Unido e
da NATO como são os Estados Unidos e Israel, desempenham papéis preponderantes
nas situações de caos que geraram a avalanche de refugiados na Europa, sendo
que nenhuma dessas monarquias torcionárias do Golfo está disposta a acolher um
único refugiado que seja.
Apesar de a teia ser complexa, não é impossível detectar que
a actual crise dos refugiados tem o dedo dos Estados Unidos da América e da
NATO, como reconhecem, aliás, os serviços de informações militares da Áustria,
pelo que, assim sendo, não será novidade para qualquer país da União Europeia.
Porém, não se vejam apenas desvantagens europeias neste
fluxo de seres humanos desesperados, fugindo a guerras fomentadas também por
potências europeias. Ouçamos o senhor Ultich Grillo, todo-poderoso patrão dos
patrões alemães, à cabeça da Federação da Indústria (BDI). “Como país próspero
e também pelo amor cristão ao próximo a Alemanha deve permitir-se acolher
refugiados”, declarou. Tal como está a acontecer, e logo a um ritmo que permite
prodigalizar enfáticos e universais elogios à senhora Merkel. “Devido à nossa
evolução demográfica”, acrescenta o senhor Grillo, “asseguramos o crescimento
económico e a nossa prosperidade graças à imigração”. Descodificando – será que
é mesmo preciso? – desgraçados maduros para aceitar trabalho escravo como quem
entra no paraíso são como pão para a boca para os barões da indústria alemã e
pangermânica, como outrora foram tão úteis os degredados em campos de
concentração.
Assim sendo, nestes dias observamos países que criaram
guerras e desmantelaram nações, dando origem a uma vaga de refugiados para a
Europa - compartimentando este continente entre cercas e muros com tonalidades
concentracionárias -, partirem para novas fases das mesmas guerras, agora sob o
pretexto de travarem o movimento de fuga combatendo grupos terroristas que são
seus cúmplices e em cuja criação e desenvolvimento participaram. São assim,
senhoras e senhores, os dirigentes políticos, militares e económicos que nos
governam. Mentirosos irresponsáveis ao serviço de patrões e interesses que
ganharão sempre com a tragédia de milhões de seres humanos, sejam quais forem
os desfechos das sucessivas crises.
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