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terça-feira, 23 de agosto de 2016

SILAS CONTINUA ENTRE NÓS


 

Silas Cerqueira desapareceu ontem fisicamente do nosso convívio.
Fica muito mais pobre o panorama da luta pela paz em Portugal e no mundo. A paz, essa coisa já de si anacrónica e que, de acordo com a ordem imposta, é algo que se alcançará generalizando a guerra, a dominação, a rapina. Silas estava nos antípodas.
Silas Cerqueira bateu-se pela paz genuína, a que nasce do repúdio pela guerra, pelas desigualdades, pela injustiça social, pela exploração da mulher e do homem. Por isso, o desaparecimento de Silas Cerqueira é algo que não diz respeito aos media sempre tão bem informados deste país, não merece ser do conhecimento dos portugueses.
Silas Cerqueira era um homem de princípios e convicções, características também caídas em desuso. Tive o privilégio de lhe fazer a primeira entrevista depois do regresso do exílio em Paris, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, porque na chefia de A Capital havia quem soubesse da existência de Silas e da sua luta, mesmo que não se identificasse com todas as suas posições cívicas. Era outro jornalismo, eram outros jornalistas. Nessa entrevista Silas Cerqueira anunciou os projectos da luta pela paz em Portugal protagonizada pelo Conselho Português para a Paz e Cooperação, instituição que nascera na clandestinidade. Porque a luta pela paz era proibida no Portugal fascista. Hoje não é ilegal, está apenas condenada à surdez oficial, ao desprezo, à calúnia.
No entanto, a obra de Silas Cerqueira e do Conselho Português para a Paz e Cooperação é algo de que Portugal se deve orgulhar porque, ainda que apenas tolerada de início, e hoje completamente ignorada, projectou o país no mundo e foi determinante para alguns acontecimentos que marcaram a vida internacional.
As conferências internacionais sobre a Palestina e a África Austral promovidas pelo Conselho da Paz em Portugal, sob o impulso dinâmico de Silas Cerqueira, trouxeram esses problemas para a arena internacional quando Yasser Arafat e Nelson Mandela não passavam de “terroristas” para os dirigentes mundiais, incluindo os da União Europeia. Em Portugal poderiam ser encontradas excepções por exemplo nas pessoas dos ex-presidentes Costa Gomes, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e da ex-primeira-ministra Maria de Lurdes Pintasilgo. Foi o Movimento Mundial da Paz, de que Silas Cerqueira era alavanca poderosa – embora preferisse a discrição pessoal – quem levou Yasser Arafat à Assembleia Geral das Nações Unidas erguendo o seu ramo de oliveira; foi o Movimento Mundial da Paz que nunca deixou cair a luta pela libertação de Mandela, até ao dia mágico em que ela se concretizou e os que o cognominavam “terrorista” se tornaram, por encanto, os seus maiores admiradores e aduladores.
Até ao momento em que as suas imensas faculdades lhe permitiram, Silas Cerqueira não deixou de se bater pelas causas da paz, da justiça e legitimidade internacional, pelos direitos inalienáveis dos povos que lhes continuam negados como no Sahara Ocidental, na Palestina, nas áreas curdas; contra o racismo e as várias formas de apartheid, com realce para o mais criminoso em acção – o israelita. Enquanto as forças lhe permitiram, nem por um momento deu tréguas à denúncia das situações vergonhosas criadas com o chamado “processo de paz” israelo-palestiniano e com as guerras no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, no Iémen, na Síria, no Mali, em tantos outros lugares do mundo.
Silas Cerqueira deixa-nos fisicamente. Portugal, o seu país, não sabe quem foi, mas nem por isso que o legado que nos deixou é menos precioso e motivador. O Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), o MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente – que ele ajudou a fundar, numerosas associações locais e de jovens contra a guerra espalhadas pelo país, um conjunto vasto de cidadãos seus companheiro e dispostos a prosseguir a sua luta têm agora sobre si a enorme responsabilidade e o orgulho de continuar o trabalho de Silas Cerqueira. A sua determinação, a dedicação sem tréguas, a disponibilidade para a paz e a sua confiança no êxito do caminho seguido são, porém, muito difíceis de igualar. Cabe-nos também essa tomar em mãos essa missão, por impossível que pareça.
Até sempre Camarada Silas Cerqueira.
 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O ESTADO DO MUNDO NÃO É UM GOLPE DE AZAR


 

Poucas situações geram um tão elevado número de opiniões coincidentes como a do estado desgraçado em que o mundo se encontra. Exceptuando os donos da opulência, poucos em número embora soberanos no poder, os tolos que argumentam com um optimismo incurável enquanto o sangue da tragédia humana planetária jorra em cascata sob os seus olhos, e os iludidos crentes de vários matizes que, contra todas as evidências, ainda acham que as divindades vão curar as chagas cada vez mais profundas, a esmagadora maioria dos seres terrestres, pelo menos no íntimo das suas consciências, não duvidam da situação dramática a que isto chegou.
O objectivo deste escrito não é o de enumerar as guerras, relatar os casos identificados de rapina global, as operações gananciosas e impunes para destruição do planeta. As atrocidades são tantas, e engendradas segundo artifícios tão diversificados, que o risco seria o de banalizar os crimes e deixá-los apenas alinhados como numa fatigante e inexpressiva lista telefónica.
Importante será lembrar, à luz de uma ou outra realidade grave e antes que o seu destino seja o esquecimento, isto é, a impunidade dos criminosos, que o estado do mundo não é um terrível caso de azar, um nefasto golpe de má sorte.
Nada disso. A degradação do mundo do ser humano é obra do próprio ser humano através de poderes delegados naqueles que menos deveriam exercê-los, os principais dirigentes mundiais em exercício. Entre os titulares de cargos que têm realmente capacidade para influir nas coisas do mundo não há um único que se aproveite, competem entre si nas capacidades e atributos para fazer degenerar os assuntos internacionais sem qualquer respeito pelos seres humanos.
Em consciência deveria abrir aqui um parêntesis para registar uma potencial e muito recente excepção, a do papa Francisco. É um homem que põe os dedos nas chagas mundiais e faz os diagnósticos correctos. Porém, fala directamente às consciências, coisas anacrónicas que os dirigentes mundiais, para o serem, erradicaram das suas pessoas. Francisco prega no deserto: quem o escuta não tem poder; os que decidem não o ouvem, por muito que lhe acenam ou sorriam.
Fechado o parêntesis, é altura de evocar um exemplo recente e que reúne muitos dos comportamentos que caracterizam as mentalidades desviantes dos que verdadeiramente nos governam. O caso chegou à comunicação social dominante com algum vigor – porque tem nutridos conteúdos de mentira e escândalo – mas, envolvendo quem envolve, caminha rapidamente para o esquecimento de onde não há que esperar qualquer consequência, muito menos a punição dos responsáveis.
É o que acontece com o Relatório Chilcot, elaborado em Inglaterra e que desnuda, sem margem para dúvidas, o comportamento vergonhoso do ex-primeiro ministro Tony Blair e dos seus comparsas da Cimeira das Lages – George W. Bush, José María Aznar e Durão Barroso. Nesta reunião magna nos Açores foram acertadas as trapaças e ordenados os falsos pretextos para a invasão do Iraque em 2003. Treze anos e milhões de vítimas inocentes depois, entre mortos, feridos, estropiados e desalojados num país ora destruído, o caos instalou-se em todo o Médio Oriente e o terrorismo dito islâmico dele decorrente tornou-se um foco de sobressalto mundial.
George W. Bush, um ícone das atrocidades universais contra os direitos humanos, goza uma reforma dourada nos seus ranchos; José María Aznar usufrui das imensas regalias que em Espanha continuam a gratificar os franquistas de novo ou velho tipo; Durão Barroso foi contemplado com a presidência da Comissão Europeia e, a seguir, com um lugar executivo na seita governante conhecida como Grupo de Bilderberg e uma posição de topo no Goldman Sachs, o superbanco mafioso que, segundo o seu presidente, “faz o trabalho de Deus” na Terra.
E Tony Blair? Pois esse bom católico que reduziu o Partido Trabalhista Britânico a uma parte do partido único neoliberal de inspiração thatcherista, dedica-se a conferências milionárias e a aconselhar governos intrinsecamente democráticos como são a ditadura militar do Egipto e a sádica e terrorista petroditadura da Arábia Saudita.
Mas provavelmente muitas pessoas já se esqueceram de que Tony Blair é o chefe do chamado “Quarteto para a Paz no Médio Oriente”. Não é ficção negra, é verdade factual: continua à cabeça dessa engenhoca que nasceu moribunda mas serve para encobrir, com o aval dos poderes mundiais, a colonização contínua da Palestina por Israel, mesmo depois de revelado o conteúdo do Relatório Chilcot. Um dos dirigentes mundiais que desencadeou uma guerra que deu origem a uma nova e acelerada fase de destruição do Médio Oriente é também o chefe do “Quarteto para a Paz no Médio Oriente”.
E quem constitui esse Quarteto? Os Estados Unidos, como não podia deixar de ser; a ONU, actualmente uma correia de transmissão de Washington e do Pentágono; a União Europeia, desempenhando o papel de corpo presente, reservando toda a agressividade contra os povos mais desprotegidos dos países europeus; e a Rússia de Putin.
O Quarteto pode ser uma caricatura, mas junta as principais forças e organizações mundiais sob a chefia de Tony Blair, um dos responsáveis por um dos maiores crimes dos nossos tempos.
Salta à vista que o estado degenerado do mundo não é fruto de um golpe de azar, de uma nefasta conjuntura de má sorte.